A ideia de criar um mecanismo que interagisse, de alguma forma, com os humanos não é nova… Na verdade, ela remonta à Antiguidade: a esfinge, por exemplo, é um termo de origem grega que significa “imagem viva”. O processo continuou: mais tarde, em 1842, a matemática Ada Lovelace desenhou o primeiro algoritmo da história.
Com o avanço da tecnologia, o conceito de inteligência artificial evoluiu até atingir atividades corriqueiras do nosso dia a dia, como acessar a conta bancária pelo celular ou comprar algo pela internet. Também não são novas as influenciadoras virtuais, como a Noonoouri, Shudu e Miquela, ou aquelas criadas por marcas.
Mas, em julho deste ano, uma influenciadora começou a atrair olhares dos quatros cantos do mundo com suas fotos sensuais postadas nas redes sociais: a finlandesa de 24 anos é uma bela loira com cabelos impecavelmente arrumados, pele lisinha, curvas acentuadas e sempre posadas em lugares paradisíacos. Só tem um detalhe: nada disso é real, trata-se de uma inteligência artificial.
E por mais óbvio que isso seja para algumas pessoas, para outros, passou batido – apesar da informação estar descrita nos perfis. Prova disso são os mais de 150 mil seguidores que Milla reúne no TikTok e Instagram, além das centenas de cantadas machistas e convites para encontros registrados nos comentários.
A repercussão da influenciadora levanta questões como reforço a padrões de beleza irreais e a falta de checagem com tudo o que se vê na internet. Quem comenta o assunto é o professor e especialista em aprendizado de máquina Tiago Fernandes Tavares, a doutora em ciências da comunicação pela USP Issaaf Karhawi, a humorista e escritora Babu Carreira, a professora e pesquisadora Luiza Santos e a comunicadora e fundadora da Feira de Moda Plus Size Flávia Durante.
Como são criados os avatares de inteligência artificial?
Antes de comentar os seus efeitos na sociedade, vamos entender rapidamente essa tecnologia funciona. Professor de Processamento de Linguagem Natural, Tiago começa comparando as IAs com o cérebro de uma criança:
“Ela vai aprender o que você ensinar. As IAs generativas saem desse estado de vazio e chegam a, por exemplo, fotos que estão no conjunto de dados e são treinadas para associar rótulos a fotos. Então, quando você põe um rótulo ali, ele vai encontrar algum caminho de associá-lo a um conjunto de pixels.”
O doutor em Engenharia Elétrica comenta que há informações sobre o código fonte específico de Milla Sofia, mas acredita que seu corpo seja gerado por IA “de uma maneira muita precisa e curada”, ou seja, ela “é uma grande média dessas fotos de pessoas reais que eles [os criadores] acham bonitas”.
Quais são os possíveis efeitos de IAs na sociedade?
A professora de pós-graduação da USP (Universidade de São Paulo) Issaaf Karhawi não vê grandes prejuízos sociais na boneca virtual, desde que ela não esteja “reivindicando o título de humano” ou enganando pessoas deliberadamente.
“Estamos falando de um espaço de experimentação com a inteligência artificial que, a priori, não é danoso e não vai fazer mal para ninguém. Eu acho que a gente está em um momento de aprender a lidar com a inteligência artificial e descobrir os limites de usos. Não há passo para trás e não tem como recuar no uso de inteligência artificial, pelo contrário. Então, é importante que a gente tenha esses ‘momentos de conflito’ para que possamos reconhecer como fazer um bom uso dessa tecnologia.”
Tiago teme como a humanidade irá encarar a tecnologia em alguns anos, especialmente em períodos eleitorais e o alto volume de fake news. Ao mesmo tempo, ele também consegue ver possibilidades com mais otimismo e acredita que qualquer ferramenta que potencialize o trabalho humano possa ser bem-vinda:
“Quando você pensa em IA como uma ferramenta de produtividade, isso é muito positivo. Você faz a mesma coisa que ela, só que ela faz mais rápido e de uma maneira mais eficaz. E, se você consegue criar uma influencer de moda, consegue criar uma influencer de ciência, por exemplo. Se eu tivesse um avatar que, realmente, conseguisse fazer o que faço, eu iria produzir material educacional muito mais rápido. Mas precisamos repensar como é que a nossa sociedade avalia o que é real e o que não é e como que a gente vai lidar com isso.”
A inteligência artificial reforça padrões de beleza irreais?
Como já comentamos aqui, a volta da estética dos anos 2000 trouxe outra “moda” à tona e que tem preocupado especialistas: a obsessão pela magreza excessiva e suas dietas restritivas. Misture o desejo pelo chamado “manequim zero” à falta de diversidade de corpos na moda e aos estímulos das redes sociais e temos aqui uma receita que pode ser perigosa.
Ainda que esteja clara nas redes sociais a informação de que Milla Sofia é uma “garota robô”, o que gera certo incômodo e preocupação é o fato dela ter sido criada com base em fotos de mulheres dentro do que é considerado “padrão de beleza”.
Para a comunicadora Flávia Durante, essa seleção específica pode, sim, reforçar padrões de beleza tóxicos, atingindo especialmente quem já possui problemas de autoimagem e aumentando ainda mais a idealização sobre o corpo feminino: “Os filtros mais recentes emagrecem mulheres gordas e embranquecem mulheres pretas, o que causa uma distorção de imagem cada vez mais presente, principalmente entre quem ainda não tem autoestima estabelecida.”
Ela entende que esse tipo de avanço na tecnologia seja algo inevitável, mas é possível incluir mais diversidade – afinal de contas, estamos falando de um mecanismo que pode aprender coisas do zero.
“Ver esse padrão até no multiverso é colocar tudo a perder! Se for para manter esse padrão que tanto lutamos para quebrar, acaba sendo algo negativo, mas se tivermos diversidade entre esses personagens, pode ser uma coisa mais natural. A gente vê uma padronização tão grande nas redes sociais, já parece tudo meio robotizado. Essas IAs só são uma simulação destas mulheres e longe da realidade de qualquer forma.”
Este, inclusive, é um ponto levantado por Issaaf. Sem defender ou recriminar a forma como Milla foi criada, ela acredita que a robô esteja apenas “replicando padrões estéticos vigentes” e que a mudança que precisa acontecer muito antes da ferramenta:
“Eu acho que o que nós, mulheres, vivemos é uma constante tentativa de nos limitarem a partir de padrões estéticos que são sempre irreais e inacessíveis: não é porque ele é desenhado por inteligência artificial, o padrão de beleza é sempre inalcançável, porque é justamente por ser inalcançável que as mulheres vão ficar confinadas e sujeitas a esse padrão eternamente.”
A humorista Babu Carreira também vê como natural o fato de Mila ter sido gerada desta forma: “A inteligência artificial é baseada no que ela acha de mais abundante e, hoje, o que temos de mais abundante [na internet] são imagens estereotipadas e modificadas.”
A doutora em Comunicação Luiza Santos explica que, hoje em dia, se tornou comum a criação de “namoradas virtuais” e que, além de reforçar o conceito de corpos hiperssexualizados em outras áreas de entretenimento, como jogos, filmes e quadrinhos, mostra a “dificuldade que os homens têm de se relacionarem com as mulheres. Ela analisa detalhes na construção da narrativa de Milla e a compara às famosas assistentes virtuais de aplicativos e aparelhos eletrônicos.
“Não por acaso, todas são mulheres e são constantemente assediadas. A Milla aponta para uma construção feita para o olhar e prazer estético masculino, com fotos de biquíni, um corpo sem imperfeições e, por ser artificialmente criada, ela não vem com nenhum dos ‘problemas’ que uma pessoa real possui. Ela é desenhada para agradar esse olhar em todos os sentidos, ela não tem demandas, pensamentos próprios ou desejos próprios.”
Portanto, os prejuízos são tanto para mulheres como para os homens por motivos diferentes, segundo Luiza. Por isso, a questão, mais uma vez, é repensar como enxergamos e perpetuamos os tais padrões de beleza:
“Para os homens mais jovens, pode contribuir para que se crie uma noção não realista sobre o que é se relacionar com outra pessoa, que não aprendam a lidar com as demandas e particularidades do outro. Em uma certa medida, reforça também uma noção socialmente construída de que as mulheres são como máquinas, que não só precisam ser perfeitas, mas que têm por função servir aos homens.”
Babu afirma, ainda, que é preciso um olhar mais a fundo no assunto e que apenas responsabilizar o produto da IA é muito superficial: “Precisamos pedir menos do corpo feminino e entender mais o que é o corpo feminino humano, mutável, que envelhece e com poros.”
Por fim, Babu fala sobre os comentários machistas deixados pelos homens nas publicações de Milla e como eles podem refletir em como as mulheres se enxergam. Além do conteúdo das frases, a humorista espera que a mudança venha das próprias mulheres, do peso que elas dão à visão masculina e à autocobrança para estarem sempre dentro deste “padrão” estabelecido:
“O homem que espera um corpo desses e que cobra um corpo desses, raramente está oferecendo um corpo assim para sua companheira. Então, sinceramente, espero que a gente pense cada vez menos no olhar masculino em relação ao corpo feminino e cada vez mais no olhar feminino em relação a nós mesmas. Na prática, a problemática dos comentários masculinos vai muito menos acerca das cobranças dos corpos e mais acerca da dominação das nossas mentes.”