Artur de Medeiros Queiroz, de 34 anos, nasceu com muito poucas células de gordura e hoje apresenta um percentual corporal semelhante ao de atletas de alta performance, resultado de uma rara mutação genética. A condição é conhecida como síndrome de Berardinelli (ou lipodistrofia congênita generalizada), afeta aproximadamente 1 em cada milhão de pessoas e, mesmo sendo o oposto da obesidade, traz complicações metabólicas semelhantes, como risco elevado de doenças.
A ausência de adipócitos — células responsáveis pelo armazenamento de gordura — faz com que a gordura se acumule em locais inadequados, como no fígado, pâncreas e músculos, podendo provocar inflamação, esteatose hepática e outras disfunções metabólicas graves. Dependendo da mutação e da gravidade, podem surgir alterações cardíacas, respiratórias, hormonais que afetam puberdade e fertilidade, problemas renais, manifestações cutâneas e até alterações neurológicas.
A falta de leptina — hormônio produzido pelas células adiposas que sinaliza saciedade ao cérebro — faz com que essas pessoas sintam fome constantemente, mas precisem limitar severamente a ingestão, especialmente de alimentos gordurosos.
A importância do diagnóstico precoce
Natural de Caicó (RN), Artur foi diagnosticado ainda criança, principalmente porque sua avó materna já tinha um filho com a mesma síndrome — o que facilitou o reconhecimento do quadro, apesar de muitos médicos não estarem familiarizados com a condição. Essa descoberta precoce também gerou desafios emocionais. Sua alimentação escolar era sempre reduzida e saudável — como maçã, banana e uvas — e ele evitava confraternizações para não sentir tentações.
Ele também não podia consumir álcool porque seu fígado metabolizava gorduras de forma atípica, o que sobrecarregava o órgão. Na adolescência, isso o deixou excluído socialmente e com fama de antissocial. Ao longo dos anos, recebeu apoio psicológico intenso, além de terapia da fala e fisioterapia para superar dificuldades de fala e locomoção.
Artur observa que mulheres com a síndrome enfrentam ainda mais preconceito por causa do corpo musculoso e mais “masculinizado” que a lipodistrofia confere — um estereótipo que ainda não se encaixa na ideia de feminilidade idealizada.
Rotina, complicações e tratamento
Nos últimos anos, Artur desenvolveu diabetes, mas mantém controle eficaz graças a uma alimentação rígida e prática regular de exercícios. A atividade física melhora a sensibilidade à insulina, auxilia na captação de glicose pelos músculos, reduz a resistência à insulina e limita os riscos de diabetes tipo 2. Além disso, ajuda a regular o perfil lipídico — elevando o HDL (colesterol “bom”) e diminuindo LDL e triglicerídeos — e reduz gordura visceral, que se acumula em órgãos internos.
Genética, prevalência e tratamento específico
Batizada em homenagem ao endocrinologista paulista Waldemar Berardinelli, que descreveu o quadro em 1954, a lipodistrofia permanece pouco conhecida no Brasil devido à sua rareza. A síndrome só se manifesta quando há herança do gene mutado tanto da mãe quanto do pai, um risco que aumenta em caso de casamentos consanguíneos — e, por isso, é mais comum em algumas regiões com histórico de uniões entre parentes.
No Rio Grande do Norte, um estudo estima cerca de 44 pessoas vivas com o quadro, o que representa 32,3 casos a cada milhão de habitantes — bem acima da média global de 1 caso por milhão. Essa incidência elevada está ligada ao “efeito fundador”: colonizadores portugueses do norte de Portugal e das Ilhas Açores chegaram ao Seridó (por volta de 1720) e se casaram entre si por tradição, o que propagou mutações associadas à lipodistrofia na região, com descendentes vindos também de Paraíba, Pernambuco, Ceará e Minas Gerais.
A forma generalizada mais grave envolve mutações em até quatro genes relacionados ao metabolismo — desde a formação dos adipócitos até a forma como o corpo processa gordura. Atualmente, não existe cura ou dieta que reverta a lipodistrofia; o tratamento se volta para controlar complicações metabólicas, como diabetes ou problemas cardiovasculares, enquanto preserva a qualidade de vida. O diagnóstico precoce é crucial para minimizar riscos, sobretudo diante de medicamentos caros para doenças raras.
Há um medicamento específico — um análogo sintético da leptina chamado metreleptina — aprovado no Brasil desde 2023, embora ainda não esteja amplamente disponível. Artur conseguiu acesso ao tratamento em 2016 via ação judicial, após perícia em Brasília; na época, o remédio ainda não era reconhecido pela Anvisa e custava mais de R$ 2 mil por dose.
Vida ativa e independente
Artur afirma que, apesar dos cuidados necessários, leva uma vida ativa e independente. Mora sozinho, trabalha como servidor público e está cursando doutorado em Educação, Ciências e Matemática na UFPR. Ele gosta de viajar — inclusive passou seis meses em Portugal por meio do doutorado, e apesar da distância da família e dos médicos, não apresentou agravamentos na saúde.
Ele espera tornar a doença mais conhecida, melhorar os diagnósticos precoces e promover maior aceitação do diferente como parte da experiência humana.
Autor: Laimyra Sevel